Marina Silva: The Transformative Power of Dreams [Transcrição Portugues]
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Marina Silva
[00:12:00]
Os sonhos, os ideais são a matéria prima mais concreta que temos para construir o mundo. Sonhos não são para que fiquemos presos em nossas ilusões, são forças que nos impulsionam para tomarmos nossas decisões e realizarmos nossas ações. Ações e decisões sem sonhos geralmente são desprovidas de sentido. E se são desprovidas de sentido não tem como serem transformadoras.
Walter Link
[00:46:00]
Bem-vindos à GlobalLeadership.TV, meu nome é Walter Link. Sempre fui fascinado pela maneira como enfrentamos os diversos desafios para atingir nosso potencial pleno como indivíduos, como organização e como sociedade. Nesta série, faço uma investigação com os maiores líderes da inovação de todas as partes do globo sobre como eles conseguem transformar inspiração em mudanças reais.
Eu os convido agora a participarem desta investigação, porque todos conseguimos fazer a diferença e todos podemos melhorar nisso. Para tanto, em nosso website, não só disponibilizamos outros diálogos e publicações, mas também falamos sobre as práticas que estes líderes e suas organizações utilizam para transformar inspiração em mudanças reais.
Introdução Marina Silva
Hoje, converso com Marina Silva, que já por duas vezes conseguiu 20 milhões de votos nas duas últimas eleições presidenciais do Brasil. Isso a faz uma das mais populares figuras políticas que defendem uma transformação real.
Este ano ela será uma candidata à presidência novamente. Ela se descreve como não sendo nem da direita, nem da esquerda, e sim do avanço, porque quer integrar a inovação e a sustentabilidade a uma economia bem-sucedida e uma boa governança.
Marina nasceu em uma família humilde de seringueiros que vivia na floresta e foi analfabeta até os seus 16 anos. Mas empoderada por sua capacidade extraordinária de sonhar com um futuro melhor, ela não só aprendeu a ler e a escrever, mas também passou a gerar grande impacto como ativista, líder de sindicato, senadora e ministra do governo.
Durante seu mandato como Ministra do Meio Ambiente, Marina planejou uma redução de 60% na taxa de desmatamento, pois ela sabia como engajar os diferentes ministérios e setores da sociedade envolvidos, que muitas vezes estavam em discordância, para que trabalhassem juntos em prol do bem comum.
Enquanto viajávamos juntos pela Europa e pelo Brasil, testemunhei algo que acredito ser a chave desta e de outras histórias de sucesso. Depois de todos estes anos trabalhando como líder, ela ainda escuta e aprende. Convido-os para esta conversa com
Marina Silva sobre sua visão para o Brasil e sobre o poder de transformação dos sonhos.
Tornando o Impossível Possível: Enfrentando Desafios Imensos
Walter Link
[03:30:00]
Marina, você é um exemplo extremamente interessante e rico da diversidade do conhecimento. Você cita a bíblia, psicanalistas, cientistas e também, às vezes, diz que tem um doutorado em conhecimentos de vida por ter crescido em meio a riqueza da sabedoria viva da natureza e da população local da floresta.
Além disso, você também tem um grande conhecimento pragmático, o que lhe permitiu, por exemplo, durante seu mandato como Ministra do Meio Ambiente, colocar em prática um plano que reduziu o desmatamento em 80% em 10 anos. Há, então, uma grande integração de diferentes tipos de conhecimento: O tradicional e natural, o pragmático, o intelectual e o espiritual. O que você pensa sobre esta integração e como você a vive?
Marina Silva
[04:49:00]
Os ideais, os sonhos e os valores, bem como algumas teorias ou princípios filosóficos e espirituais que temos, é como se fossem asas para poder dar movimento e fazer voar as coisas concretas que são muito pesadas e às vezes difíceis de movimentar. Quando começamos a implementar o plano de combate ao desmatamento da Amazônia, estávamos com um desmatamento de 27 mil quilômetros quadrados no ano de 2004. E reduzi uma cifra tão alta e tão perigosa, pela ameaça que fazia à floresta e ao próprio planeta, em um momento em que havia crescimento econômico entre 5% a 7%.
Não era algo fácil, mas, movidos por tantas ideias, e ideias de muitas pessoas e de muitos setores, foi possível não tomar isso como algo impossível, intransponível. E que era possível transformar uma coisa muito difícil em um desafio muito estimulador para toda a equipe e para mim mesma. Porque tínhamos a consciência de que aquilo era a emergência, a coisa mais importante a ser feita, mesmo que houvessem muitas coisas importantes que precisavam ser feitas, que não podiam deixar de ser feitas. Se fizéssemos todas elas e não reduzíssemos o desmatamento, era como se nada tivéssemos feito.
Então, isso se tornou para nós uma questão. Uma questão a ser resolvida porque ela era uma espécie de alavanca que poderia movimentar e dar força para todas as demais. Existem coisas que, quando você coloca dentro de um determinado sistema, ela altera todo o sistema. E era isso que nos movia.
Então as coisas podem ser muito sonhadoras, mas elas se traduzem em ações práticas os sonhos, as ideias, as teorias, elas são forças que nos levam para além das dificuldades, para além das limitações concretas que nos são impostas. Se fosse isso, se não fosse assim,
até hoje estávamos andando apenas de navio ou estávamos andando apenas de cavalo. Existiram pessoas que foram sonhando e realizando seus sonhos.
O mais importante é ver a vida, ver a política, ver a ciência como um processo vivo e não como uma mera repetição. E quando é um processo vivo, cada situação precisa ser lida, precisa ser entendida e precisa ter um correspondente em termos de ação e de relação com essa realidade viva que é inteiramente singular em diferentes momentos da vida e da história.
Sonhos Podem Mudar o Mundo
Walter Link
[08:40:00]
Você frequentemente fala sobre a importância dos sonhos. Fala também que os sonhos não são algo não prático e sem importância para a realidade. Pelo contrário, você os descreve como alicerces das verdadeiras inovações, não só no âmbito social, mas também na vida pessoal. Você afirma que se não tivesse se permitido sonhar e corrido atrás de seus sonhos, que hoje estaria vivendo uma vida muito diferente. Conte-nos um pouco sobre como sua história pessoal se desenvolveu e como seus sonhos a ajudaram neste salto para um novo paradigma.
Marina Silva
[09:29:00]
Sim, costumo dizer que os sonhos, os ideais, são a matéria prima mais concreta que temos para construir o mundo. A maioria das coisas que existem e das coisas que acontecem na vida das pessoas ou dos grupos sociais vem dos sonhos. Se são bons podem ser coisas boas, se são sonhos ruins acontecem coisas ruins. Mas isso tudo vêm do campo das ideias.
Para mim foi muito importante ter os ideais, por mais simples que fossem. Quando eu era criança tinha um ideal de que queria ser freira, de que queria ir para um convento para servir a Deus e fazer coisas boas para as pessoas no mundo. Mas sempre que eu falava isso para minha avó lá no meio da floresta, ela sempre me dizia que freiras não podiam ser analfabetas, que para ser freira tinha que saber ler e escrever.
E onde eu nasci não tinha escola, não tinha ninguém, nenhuma criança que estudasse. Então aquilo, no lugar de me entristecer e desistir do meu sonho, começou a criar em mim outro sonho, que era o sonho de aprender a ler e escrever, para poder realizar o meu sonho maior.
E, sempre que as pessoas dizem que sou muito sonhadora, muito idealista, eu fico pensando que se eu fosse uma pessoa pragmática e realista, nunca teria feito as coisas que fiz e que deram os resultados tão bons que deram na minha vida. Porque não tinham muitos elementos para ser prática e nem para ser realista na direção que caminhei.
Porque até os dezesseis anos não sabia ler nem escrever, perdi a minha mãe quando tinha catorze anos, tinha sete irmãos para ajudar meu pai a criar e também era uma pessoa que teve muitas malárias, cinco malárias e três hepatites.
Então, como imaginar que alguém com essas condições, vivendo isolado na floresta, iria pragmaticamente pensar: eu vou para a cidade, vou estudar, vou conseguir me formar, depois eu vou conseguir ser professora, vou ser deputada, senadora, candidata a presidente da república, vou ter 10, 20 milhões de votos dos brasileiros e vou ser ministra do meio ambiente. Isso não tinha factibilidade, pragmaticamente falando.
Mas como tinha sonhos, um sonho foi levando a outro e foi me ajudando a criar e a materializar esses sonhos. Sonhos não são para que fiquemos presos em nossas ilusões, são forças que nos impulsionam para tomarmos nossas decisões e realizarmos nossas ações. Ações e decisões sem sonhos geralmente são desprovidas de sentido. E se são desprovidas de sentido não tem como serem transformadoras.
Walter Link
[13:28:00]
Marina, você fala muito sobre a crise da civilização a qual estamos enfrentando, não só no Brasil, mas também no mundo. No entanto, você também cita o surgimento de forças positivas e mudanças que vêm ocorrendo. Por favor, diga-nos o que você pensa sobre este quadro.
Marina Silva
[13:46:00]
Minha percepção é de que estamos vivendo mais do que crises isoladas, crises compartimentadas, estamos vivendo uma crise mais sistêmica que se compõe de várias crises. Talvez as mais importantes sejam a crise ambiental, a crise econômica-social, política e de valores. Essas cinco crises, para mim, elas são o sintoma de um colapso mais amplo, o que eu chamo de uma crise civilizatória, uma crise da própria civilização.
E, essa crise da civilização tem um aspecto duplo de emergência, a emergência da necessidade de intervirmos para tentar reverter o processo, mas também a emergência de novas oportunidades que estão surgindo dentro da própria crise como forma de transformar o modelo que está estagnado, que está colapsado.
As Cinco Crises na Comunidade Global
Walter Link
[14:59:00]
Quais são as crises que você enxerga nestas cinco áreas?
Marina Silva
[15:05:00]
Eu acho que as três mais importantes é a crise ambiental, a crise econômica e a crise de valores. Porque, essas três dimensões da crise, são elas que funcionam como elementos propulsores de si mesmas e das demais crises. A crise de valores, no meu entendimento, ela está na base porque ela que produz a crise política. A falta de valores que levou com que tivéssemos uma visão de política separada da ética. A falta de valores que nos levou a separar a economia da ecologia, é a crise de valores que nos levou a ter um discurso e uma prática muitas vezes contrários a esse discurso.
Então, essas cinco crises, elas têm, como eu já disse, como base, a crise de valores, a crise política e a crise ambiental. Porque, no caso da crise politica, é ela que ajuda a fazer as escolhas, a tomar as decisões, a tomar as medidas ou não tomar as medidas. E, infelizmente, a política está vivendo uma grande crise como dizia o Baumann. Ele dizia que a política perdeu a sua potência transformadora, que já não consegue mais promover mudanças significativas, porque conquistamos a liberdade de fazer o que quiser, de dizer o que quiser, menos de mudar o sistema. Esse sistema que está estagnado, esse sistema que está colapsando e ameaçando a continuidade do processo civilizacional.
E, se não tivermos uma visão capaz de ressignificar os valores que nós trouxemos até essa crise, talvez não tenhamos como sair dela. Porque crise civilizatórias não ocorrem em função de fracassos, elas ocorrem em função de sucessos. É o excesso de sucesso que leva à crise civilizatória. Porque, quando fazemos alguma coisa que nos dá algum resultado positivo, que nos traz alguma recompensa, seja ela afetiva, seja ela econômica, seja ela estética, geralmente, temos uma tendência de repetir essa operação e a repetição indefinida de algo que traz um retorno positivo acaba levando à estagnação.
E aquilo que antes dava uma resposta positiva passa a dar uma resposta negativa no longo prazo. Porque é aquilo que um psicanalista brasileiro chamou de Princípio do Absurdo, que é quando uma coisa alcança o seu limite, ultrapassa esse limite e se transforma no seu contrário, então é por isso que é muito difícil resolver crises civilizatórias. Não temos nem um acervo de experiência para recorrer a ele, porque as civilizações que colapsaram antes de nós não saíram de suas crises. Os egípcios não saíram, os gregos não saíram, os romanos não saíram, algumas civilizações pré-colombianas não saíram.
E com uma diferença, a crise que eles viveram não alcançava geográfica e demograficamente o planeta e a humanidade inteira. A crise que estamos vivendo alcança geográfica e demograficamente o planeta e a humanidade inteira, não há um lugar onde
possamos nos esconder. Por isso estamos em uma emergência global, estamos diante de um impensável, que é a possibilidade de algo que pode afetar todo o processo de vida na terra.
Mudança e Novos Paradigmas na Civilização
Walter Link
[19:51:00]
Você poderia também comentar sobre os acontecimentos positivos que vem testemunhando mundo afora que, além de abordarem estas crises, iluminam o caminho para um novo paradigma de civilização?
Marina Silva
[20:08:00]
Essas emergências estão contidas, como eu falei, na própria crise, porque a vida sempre busca a vida. E, como dizia Hannah Arendt, os homens, ainda que morram, não nasceram para morrer, nasceram para recomeçar. E, dentro de cada processo que está morrendo, que está em estagnação, tem um recomeço. E a gente pode perceber esses recomeços em várias regiões do mundo, em vários lugares, em vários segmentos da sociedade, dentro dos governos, dentro das empresas, dentro das universidades, na própria sociedade de um modo geral.
Porque eu percebo que a mudança que precisa acontecer no mundo, ela é de tamanha magnitude, de tamanho alcance, que não virá mais pelos processos que imaginamos. Vêm, as mudanças, por transições muito demoradas e nem por rupturas abruptas, uma espécie de mutação que os biólogos chamam de mutação possibilitadora, que são aqueles processos de mudança em que o próprio organismo se transforma, a partir dos fatores que o ameaçam para se proteger.
E é por isso que, na sociedade, o próprio tecido social, cultural, econômico, artístico, ético, estético, está se mobilizando para criar uma nova forma de ser e estar no mundo. Por exemplo, isso acontece primeiro no terreno da consciência, onde as pessoas começam a ter uma necessidade muito grande de fazer algo diferente daquilo que está sendo feito. E no começo é sempre processos intuitivos, como diz um psicanalista italiano chamado Mario Aletti. Ele diz que os homens aprenderam a usar a força dos ventos para navegar muito antes de saber sobre as leis da dinâmica eólica.
Muitas coisas que começaram a ser feitas não tinham a mesma compreensão que temos agora, muitas pessoas começaram a se interessar por produzir energia da água, energia do vento, energia da biomassa, energia do sol, de fontes alternativas. Essas pessoas começaram como pioneiras, mas era uma visão antecipatória do que já estava acontecendo de ameaça ao próprio organismo. E, nesse momento em que isso está se tornando evidente para todos, então essas ideias iniciais começam a se transformar em grandes tendências.
Então podemos ver também as tendências de consumo sustentável, podemos ver pessoas preocupadas em como educar para uma nova visão de se sentir feliz, de se sentir próspero, de ter noção de pertencimento. Com ideias que vão tirando cada vez mais a nossa atenção para o desejo de ter as coisas e deslocando o nosso desejo para a busca de ser, de ser menos consumista e muito mais desenvolvedores de relacionamentos, de contatos experienciais com a natureza, com as outras pessoas, com a gente mesmo.
Isso será um novo ramo dos negócios, onde, em vez de oferecer coisas para as pessoas,
vamos oferecer experiências. Isso será a nova dimensão, a nova fronteira, porque vamos sair cada vez mais dos limites extensivos, onde estamos disputando por coisas, coisas do planeta, minério, produtos. Isso é importante, mas isso é importante apenas como uma base.
E vamos para o terreno dos limites intensivos, onde continuaremos com o consumo necessário e continuaremos com a busca das vantagens econômicas, mas será o consumo necessário, será o lucro admirável e respeitável, todo o nosso deslocamento tem que ir para o ideal do ser. Porque há limites para ter e o planeta está dizendo isso.
O Novo Ativismo e a Liderança Multicêntrica
Walter Link
[25:19:00]
Você também fala de uma nova visão de ativismo…
Marina Silva
[25:25:00]
Minha percepção é de que está surgindo um novo sujeito político no mundo. O sujeito é aquele que age e interage com a realidade com possibilidades de transformação, que tem uma intenção, um conhecimento das ações que está fazendo, que tem a prerrogativa do agir não alienadamente. E o velho sujeito politico, que nos trouxe até aqui, faz parte, na sua grande maioria, desse processo de estagnação do novo modelo que está insustentável.
Mas, o novo sujeito político é a única chance de sairmos dessa crise civilizatória, porque são pessoas que tem demandas muito diferentes e expectativas diferentes. Por exemplo, a maioria das pessoas já não querem mais ser espectadoras da política. A maioria das pessoas já não querem mais ter líderes que são arrebatadores, que fazem tudo por elas. A maioria das pessoas não querem mais estruturas rígidas que as congelem em determinadas circunstâncias. Elas querem estruturas que tenham maior plasticidade, maior flexibilidade para que possam transitar nas diferentes oportunidades e necessidades que a vida lhes apresenta.
E esse novo sujeito politico também está criando uma nova forma de ativismo, não é mais o ativismo que antes era dirigido pelo partido, pelo sindicato, pelo líder pastoral ou pelo líder empresarial ou mesmo as lideranças carismáticas arrebatadoras. É o ativismo das pessoas que eu chamo de ativismo autoral. Não é mais o ativismo dirigido, é o ativismo autoral, em que as pessoas elas são autoras, mas também são mobilizadoras, também são protagonistas do processo.
Uma coisa importante que o Winnicott falava é que é preciso ser capaz de ficar a sós consigo mesmo na presença do outro disponível. Não é que ficamos alheio. É que ficamos dando sustentação para que determinados atores façam a sua contribuição e, em outro momento, entramos em ação.
Assim também vai ser os líderes políticos, os líderes empresariais, são, como os problemas são multicêntricos as lideranças serão multicêntricas. E cada vez mais vamos ter que fazer alguns movimentos paradoxais.
Avistando Paradoxos e Potencializando o Progresso
Walter Link
[29:06:00]
Você trabalha muito com paradoxos e com a combinação de palavras e conceitos os quais não são tipicamente colocados juntos como, por exemplo, a democratização da democracia, ou a riqueza da cultura como algo fundamental para a sua ideia de desenvolvimento político e social.
Marina Silva
[29:34:00]
Para ajudar a compreender o mundo e a transformar esse mundo incrível, nós vamos precisar de utilizar muitas coisas ao mesmo tempo, sair do terreno puro e restrito da visão cartesiana das coisas e andar mais para o terreno dos paradoxos, sair da visão materialista e aprender a dialogar também com o mistério. Essas coisas parecem incompatíveis, mas são elas que irão ampliar cada vez mais a nossa visão e a nossa ação.
Quando falamos a palavra democracia temos a sensação de que ela por si mesma se basta, como se fosse uma coisa unária, onipotente, onipresente, onisciente, mas a democracia está em movimento. E podem ser movimentos progressivos ou podem ser movimentos regressivos. E é fundamental que tenhamos a compreensão de que essas duas coisas podem ser também integradas em uma visão sistêmica do que seria a democracia.
Quando os gregos inventaram a democracia não era tão democrática assim. A democracia não era para as mulheres, a democracia não era para as crianças e não era para os escravos. Depois a própria democracia ajudou a acabar com a escravidão e a democracia integra cada vez mais as mulheres e as crianças, com suas contribuições muito singulares e necessárias para esse tempo.
A democracia, no mundo ocidental, e da forma como conhecemos, desde que ela ganhou força a partir da Revolução Francesa, substituindo as monarquias pelas democracias, ela está estagnada, já não é capaz de responder a realidade desse tempo. É preciso democratizar a democracia.
Eu diria que hoje nós estamos vivendo uma democracia prospectiva, porque antigamente a democracia podia se ampliar, mas era muito restrito àqueles que contribuíam para melhorar a qualidade da democracia, eram os governos, eram os acadêmicos, eram as organizações empresariais ou religiosas, depois vieram os sindicatos, depois vieram as ONGs.
Mas hoje, há uma demanda de cidadãos, de pessoas como indivíduos, querendo melhorar a qualidade da democracia. E milhões e bilhões de pessoas no mundo inteiro estão trabalhando para democratizar a democracia. Estão prospectando novas formas de realização da democracia, tanto no que concerne a sua visão quanto no que concerne ao processo que constitui o encaminhamento ou a formulação dessa visão, quanto nas estruturas que serão as plataformas de sustentação para a visão e os processos.
Então, eu diria que estamos em um momento de prospectar em uma escala jamais imaginada a democratização da democracia em termos sociais, em termos econômicos, artístico, cultural, espiritual. É uma profusão de coisas que envolvem as pessoas, a contribuição dos indivíduos. O grande desafio é fazer com que esse momento tão rico e diversificado não se perca na fragmentação, no individualismo, porque não se consegue construir nada fragmentado e atomizado porque os seres humanos são seres que dependem um dos outros.
Sem ideia de projeto de interesse público, sem interesse coletivo, sem visão de comunialidade, não há a transformação, é uma desagregação, é uma dispersão desagregadora. Precisamos fazer com que esse processo se transforme em uma dispersão agregadora. Isso é democratizar a democracia.
A Saúde da Humanidade depende da Saúde de Nosso Planeta
Walter Link
[34:54:00]
Outra área fundamental da política e da concepção de novas políticas é a saúde e a sustentabilidade das pessoas, que está ligada a saúde do sistema natural. Como podemos desenvolver as áreas dos cuidados à saúde do planeta e das pessoas e como estas estão relacionadas?
Marina Silva
[35:27:00]
Durante muito tempo achávamos que podíamos ser saudáveis adoecendo o planeta. Enquanto lutávamos para ter melhor alimentação, mais conforto, não tínhamos a percepção de que com isso estávamos, em muitos aspectos, adoecendo o planeta. Agora, cada vez mais, a ciência nos dá consciência de que, em um planeta doente, não haverá saúde para as pessoas e nem para as outras espécies.
Então, pensar em qualidade de vida para as pessoas é pensar em qualidade de vida também para as outras formas de vida e isso só será possível com uma boa saúde do planeta. É preciso trabalhar mais a ideia de promoção da saúde do que a ideia de prevenção da saúde.
Chegamos a um ponto em que descobrimos que curar os problemas de saúde era muito limitado. E fomos para um passo a frente. Então vamos prevenir os problemas de saúde, agora precisamos dar um terceiro passo. Vamos promover práticas saudáveis. E, se assim procedemos, teremos menos investimentos em prevenir e em curar os problemas de saúde. Isso será, digamos, apenas algo que fugiu da nossa possibilidade porque não temos como controlar todas essas variáveis, é impossível.
Mas, a mesma coisa em relação ao planeta. Temos que promover uma cultura saudável de cuidado com o planeta, com as suas funções vitais em proteger a sua água, proteger a biodiversidade, em proteger suas grandes geleiras, em proteger a fertilidade do seu solo, porque é disso que, é com isso que damos suporte à vida. O que existe no mundo são os suportes da vida.
E tudo isso talvez tenha como síntese uma única coisa. Talvez a única, digamos, o resultado mais maravilhoso de todas essas coisas que existem seja a existência da vida. A vida, arrisco dizer, é a razão pela qual as pedras parecem inertes. A vida é a razão pela qual as plantas produzem oxigênio, produzem gás carbônico. A vida, talvez, seja a razão pela qual a água é tão necessária no nosso corpo e no corpo do planeta. Parece que tudo converge para a vida.
Acolher a Diversidade é essencial para a Sustentabilidade
Walter Link
[38:57:00]
Nos trabalhos inovadores que apoio por todo o mundo, frequentemente afirmo que a diversidade é um dos aspectos mais importantes para o aumento da capacidade de inovação. Qual é o papel desta riqueza da diversidade e como podemos alcançá-la, considerando as dificuldades de lidar com a diferença?
Marina Silva
[39:29:00]
Isso é algo que precisa ser tratado com muita sinceridade e o reconhecimento de que a diversidade e a diferença é algo que nos cria um certo incômodo. Nos incomoda. Ficamos incomodados na presença de situações ou de pessoas que são muito diferentes de nós.
Todavia, ficamos também muito incomodados quando estamos em um ambiente que é exatamente igual a nós. E isso cria uma relação de ambiguidade. Mas entre ficar num espaço que é totalmente igual a nós, a mesma coisa, e um espaço onde tem diversidade, há uma diferença muito grande que é a possibilidade de troca. Entre os iguais não há como existir a troca. Logo, é um empobrecimento, uma forma de estagnação. Só é possível haver troca na diferença.
Então, aprender a conviver com a diferença é a chave para se viver em sociedade, é a chave para se ter processos criativos, para se ter processos que são produtivos e que são livres ao mesmo tempo. O desafio é de como vamos encontrar um ponto comum onde nós possamos nos sentir próximos mesmo nessa diferença. E o que possibilita esse encontro é uma coisa que é, digamos, igual para todos nós: somos seres humanos. Esse é o ponto de contato que nos une a todos.
Ainda que diferentes, somos seres humanos e isso possibilita contatos produtivos, criativos e livres, mesmo que seja para que cada um possa caminhar na sua respectiva direção. Sem o suporte dessa troca, eu não consigo sequer ir na direção que eu gostaria de ir.
Criatividade Humana e Mudança na Civilização
Walter Link
[42:34:00]
Parece-me que você está descobrindo e descrevendo algo que muitos dos líderes com os quais trabalho por todo o mundo estão descobrindo. Que precisamos mergulhar na profundidade de nossa humanidade individual e compartilhada para não só descobrir a criatividade e a inovação para nós mesmos, mas também para conviver com a diferença e transformá-la em riqueza de diversidade.
Marina Silva
[43:09:00]
Sim, porque o profundo de nossa humanidade é algo que contém tudo aquilo que suporta nossa humanidade. Não existe uma humanidade pura. A humanidade tem também as outras formas de existência como constitutiva dela própria. Por isso que há um universo muito grande de criatividade dentro de nós.
Costumo dizer que somos uma pequena parte da natureza que consegue dizer o que sente com palavras. As outras partes da natureza usam outras formas de dizer o que sentem. Nós talvez sejamos a única parte da natureza que consegue dizer com palavras e palavras são muito difíceis de serem criadas, porque elas precisam traduzir uma linguagem que é a linguagem da natureza. Tem uma educadora brasileira que disse uma frase que me marca profundamente, chama-se Nádia Bossa. Ela diz que a realidade responde na língua em que é perguntada.
Eu gostei muito dessa frase porque eu cheguei à conclusão de que a realidade é poliglota. E se nós não nos tornarmos poliglotas para conversar com a realidade estaremos extraindo respostas e tendo um diálogo muito pobre com a realidade.
Acho que os artistas, as pessoas espiritualizadas, os designers, conseguem um diálogo muito mais amplo com a realidade, conseguem decifrar muito melhor a linguagem da realidade. Por isso são tão criativas e por isso antecipam tanto as coisas que somente depois é que vamos experienciar, experimentar, do ponto de vista prático, concreto.
Nesse terreno, a ideia de criatividade é também um processo coletivo, não é puramente individual. Em mim está boa parte das coisas que já foram criadas e das coisas que serão criadas. Por isso que posso tanto ressignificar a experiência do passado quanto posso projetar coisas para o futuro.
Somos muito voltados a ignorar o passado e pensar muito mais no futuro. Mas o presente é apenas um pretexto para que possamos mover a roda do passado na direção do futuro. E fazemos isso, às vezes, para ressignificar ou para repetir o passado. Podemos recalcar ou fazer aflorar o passado. Podemos negar ou afirmar o passado. Mas tudo isso fazemos no presente, mas ele não se presentifica da mesma forma. Se presentifica de outra forma.
O Papel dos Jovens para a Mudança
Walter Link
[47:24:00]
Em sua fala recente na conferência Chatham House Global Climate, uma das informações mais importantes que ouvimos foi que, em uma pesquisa mundial, jovens de 20 anos de idade concordam mais entre si no tocante a valores fundamentais do que com seus respectivos pais. E estes valores estão perceptivelmente voltados a esta nova civilização que caminha em direção a uma maior sustentabilidade social e ambiental e à importância dos valores.
Marina Silva
[48:04:00]
Os jovens são sempre os propulsores das grandes mudanças. Geralmente as pessoas adultas e as pessoas velhas têm um papel importante nos largos espaços de estabilização. Quando entramos em crise, a força propulsora da mudança são os jovens, porque não estão comprometidos com aquilo que deu muito trabalho para construir e não tem essa consciência, esse apego a essas coisas. Por isso, as grandes mudanças, elas acontecem muito impulsionadas pelas forças dos jovens.
Isso pode acontecer em pequenos períodos de mudanças temporárias e pode acontecer em escala como essa que estamos vivendo agora, de escala global. Porque quem sente a maior ameaça em seu próprio corpo, em seu próprio pensamento e sentimento, mesmo que não consiga transformar isso em palavras, são os jovens. Porque estão desidentificando-se com a forma estagnada que vê que não lhes dá mais possibilidade de futuro.
Então eles entram em ação e criam comunidades de pensamento entre eles próprios. E, uma forma inteligente de fazer essa grande mudança, é quando eles já não são mais orientados pelos que estão associados às forças de estagnação a não ser por aquelas pessoas experientes, professores, empresários, políticos, que também se desidentificaram e que passam a ser uma espécie de mentores para eles, de pessoas que lhes dão algum suporte. Mas, quem tem a visão da mudança são eles.
Geralmente achamos que as pessoas mais experientes é que tem a visão e os jovens tem os sonhos. Mas, nos momentos das grandes mudanças, quem tem a visão são os jovens e as pessoas mais idosas tem apenas o sonho. É uma inversão das coisas. Eu gosto muito de um texto bíblico que diz que chegaria um tempo em que os velhos teriam os sonhos e de que os jovens teriam a visão.
Acredito que esse tempo chegou. E, por isso, não é por uma questão de desrespeito, é por uma questão de cumprir o seu papel histórico. Não é a negação de algo para as pessoas mais experientes, é uma oferta que os jovens estão fazendo. Porque, como têm a visão, conseguem desenvolver melhor os processos, conseguem inventar novas estruturas e é isso que cria um novo ciclo de prosperidade.
Walter Link
[51:21:00]
Em nosso website globalacademy.media, é possível encontrar mais materiais, outros diálogos com líderes da inovação de todo o mundo, assim como atividades práticas que ajudam a eles e às suas organizações a transformarem inspiração em mudanças reais.